quarta-feira, 20 de julho de 2011
E nada se passou
Atira-se do passeio à minha frente e saltita dum lado a outro, sem me ver, sem me ouvir, como pulga com comichão, a tentar atravessar o fio lento de carros que vem em sentido contrário, brando, insubmisso, com um destino marcado que nem o fastio do trânsito pesado altera. Saltita o gajo e eu levo décimas sem medida de segundo com a mão e o pé direitos a premer nos travões, a imaginar o filme não da vida inteira passada, mas da pouca que me sobra em futuro se, um, o gajo não me sai da frente dum raio duma vez, ou/e, dois, a mota não se detém antes do embate. As mãos, pequenas, minhas, aguentam o guidão —não se dando ao luxo de movimentar-se nem meio milímetro para premer no botão vermelho da buzina; as pernas, tensas, minhas, preparam-se para equilibrarem —inutilmente, receio—, na violência do impacto, o animal de plástico e ferros que se entregou ao cuidado delas. Nem um metro separa já os corpos humanos envolvidos. Grito. O gajo vira o rosto para mim. Ouviu-me, vê-me. Escancara olhos e boca alucinado. Encolhe-se. Cobre a cabeça com os braços como um boneco de porcelana e aguarda quieto o golpe. A mota, enfim, pára. Eu respiro, fundo fundo. A pulga, o boneco, o gajo desmancha o gesto. Pede desculpas e nego com a cabeça, não faz mal, não faz mal, digo para ele e os meus botões, e fico ali, parada, no meio da vida ainda, a olhar como enfim atravessa entre os carros o resto da rua, com uma vontade brutal e frustrada de abraçá-lo, de sorrir para ele... nada aconteceu que não mereça em casa muitas festas para os cães que já estarão com fome.
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5 comentários:
Uf! Grande tensão real e narrativa! Bjs.
Susto grande, y suscribo lo que dice Pau. Cuídate.
Muita tensão, pau! :)
Pois non sabes o mellor, Ella. Foi nada máis saír da túa casa de verán. Na rúa principal!
Saberlo no es lo mejor Sun. Recuerdo el momento de despedirnos después de una tarde de lujo. Menos mal que todo quedó en susto.
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