sexta-feira, 30 de setembro de 2011

Desarrumações mentais

O que ele sonhou essa noite, se eu contasse como ele me contou, ninguém mais vinha cá espreitar. Pesadelo nojento! Ainda tenho arrepios quando visto no meu corpo pele e vísceras suas para imaginar o que pôde ser tal experiência. Pois, digam-me, alguém sonhou alguma vez que enquanto uma família estranha se lhe instalava, sem explicações como os sonhos exigem, em casa ―na casa enorme em que vive sozinho e à vontade com as suas manias e desarrumações medidas―, uma família em que a mulher está sempre fora a limpar e trabalhar, enquanto o homem e o filho estão sempre dentro a sujar e nada fazer, apoltronados (apotroncados, como diz uma minha vizinha que mora em vocabulário próprio) ante o televisor a ver partidos de bola, trasfegar cervejas e engolir pizzas, o dono da casa tinha de andar de joelhos a esfregar o rasto de porcaria que pai e filho iam deixando pela casa acima e abaixo, que eram lá umas escadas que só no dia do juízo final terminavam, zangando-se cada vez mais com aqueles intrujões porcos que lhe calharam, quando de repente, nota uma bolha num braço que rebenta e aparece um buraco escuro, preto, de meio centímetro e ao espremê-lo aquilo jorrava cagalhões castanhos secos de pombo?

quarta-feira, 28 de setembro de 2011









  
Porto, 27 de outubro de 2011

segunda-feira, 26 de setembro de 2011

quarta-feira, 21 de setembro de 2011

A violência do Estado totalitário

En ese tiempo, una de las particularidades más sorprendentes de la naturaleza humana que se reveló fue la sumisión. hubo episodios en que se formaron enormes colas en las inmediaciones del lugar de la ejecución y eran las propias víctimas las que regulaban el movimiento de las colas. Se dieron casos en que algunas madres previsoras, sabiendo que habría que hacer cola desde la mañana hasta bien entrada la noche en espera de la ejecución, que tendrían un día largo y caluroso por delante, se llevaban botellas de auga y pan para sus hijos. Millones de inocentes, presintiendo un arresto inminente, preparaban con antelación fardos con ropa blanca, toallas, y se despedían de sus más allegados. Millones de seres humanos vivieron en campos giantescos, no solo construídos sino también custodiados por ellos mismos.
Y no ya decenas de miles, ni siquiera decenas de millones, sino masas ingentes de hombres fueron testigos sumisos de la masacre de los inocentes. Pero no sólo fueron sumisos: cuando era preciso votaban a favor de la aniquilación en medio de un barullo de voces aprobador. Había algo insólito en aquella extrema sumisión.
Vasili Grossmann. Vida y destino. (Trad. de Marta Rebón)

Formas e espelhos










Está aberto.

Figueira do demo







Datura stramonium

quarta-feira, 14 de setembro de 2011

Contravivente

Através duma outra voz descubro vinte anos depois (vinte, vinte mesmo, exactos, tudo e nada, sempre tarde) que não sobrevivi, antes contravivi. Que vivo ainda (ao que parece, pois continuo a pagar civicamente impostos) não graças a mas apesar de. Do veneno. Ou dos venenos: o interno, genético, inevitável; o externo, sintético, que se pôde evitar. Num simples verbo auxiliar em particípio passado —que expressa capacidade perfeita e paradoxalmente descumprida por imposições semânticas do verbo principal— assenta o desespero inteiro, maduro, quase podre.

E agora? Parto a loiça toda?

domingo, 11 de setembro de 2011

Diferente?

Até parece uma outra cidade: não há belíssimos edifícios a ruir, não há moedinhas em cada canto, não há velhas a peidar-se enquanto arrastam a miséria (nem, por acaso, nenhuma outra classe de velhos, idosos que se diz agora), não há lojas fechadas por falência, não há medo ao lusco-fusco... até eu fui eliminada das imagens possíveis...

segunda-feira, 5 de setembro de 2011

Chá de meia noite

Há chás que tecem conversas
com a delicadeza
dos bordados e os estuques antigos
erigidos sobre a paciência das mãos sem pressa.

Não contam as horas
mas os minutos que ficaram plenos
de sentido e forma.

domingo, 4 de setembro de 2011

Crise

Teócrito Ignácio nasceu, sendo muito pequeno, no seio duma família amantíssima da poesia surrealista e das corridas de Fórmula 1. À diferença do comum dos mamões, que enfiam o polegar na boca, distinguiu-se logo pela teima em devassar com os dedos (das mãos) todos os trilhos parez-que infindos das narinas. O meu biografado, que naquela altura mais bem escassa nem sequer torcia muito pelas inclinações familiares, vez por outra extraía daquelas negrumosas profundezas um êmbolo sem fôlegos ou um verso solto com odor de cadáver bastante esquisito. Os pais babados, no lugar de lhe censurarem a conduta —chapada vai, grito vem, olhar reprovador em permanência—, alimentaram-lhe o instinto com gargalhadas, aplausos e alaridos a que o bebé respondia mediante esgares intelectuais que aperfeiçoou com o tempo e o nascimento das primeiras cáries. Foi assim que se fixou nele o bom costume de escarafunchar no nariz à caça dos mais variados tesouros, tanto minerais e animais como abstractos. Ontem, por exemplo, enquanto contemplava enlevado o anúncio dum dentífrico a patrocinar um documentário sobre o Dalai Lama, começou a pujar dum fiozinho com ares de verdade que acabou por concretizar-se num bastão de mando com o punho em ouro de vinte e quatro quilates, bem que o resto era era uma vara grosseira e nodosa de carvalho, o que denunciava recortes orçamentais durante a derradeira fase do processo de fabrico.

Não sei bem é onde vai parar isto.

P.D. (isto é, Postal Direccionado): Teócrito Ignácio é branco.