quarta-feira, 29 de agosto de 2012

Das etimologias populares

Pode-se pensar que estou concentrada a ler o César Vallejo na sua vertente surrealista. E estou. Só que por vezes há na esplanada frases dispersas pronunciadas num tom que se eleva sobre o rumor confuso das vozes. Ignoro qual foi frase anterior, também não me interessei por prestar ouvidos à seguinte. Fiquei-me pelo instante. O gajo levantou-se da cadeira, pegou no telemóvel que estava sobre a mesa e mostrou-o aos seus dois interlocutores como o fiscal mostra ao tribunal e ao público presente na sala a prova definitiva do crime (quer-se dizer, girando o torso ao de leve para a direita sobre as ancas, os olhos escancarados, uma celha mais arqueada do que a outra):

—Isto é um telemóvel, te LE móvel, ou seja: LE vo-te comigo —declarava enquanto fazia de conta que ia enfiar o dito no bolso das calças, para finalmente pousá-lo de novo na mesa e, de novo também, sentar ele.

Quem quer mais poesia, digo, provas?

terça-feira, 21 de agosto de 2012

domingo, 19 de agosto de 2012

sexta-feira, 17 de agosto de 2012

sexta-feira, 10 de agosto de 2012

quinta-feira, 2 de agosto de 2012

O desfecho

Vem aí o homem que se suicidou no outro dia —disse-me o senhor Luís no domingo, enquanto ele entornava cervejas e eu páginas.

Fora no regresso a casa que eu vira. Era na quinta, eu atravessava de bicicleta a ponte e na ponte, bem arrumadinho no chão o embrulho, duas sapatilhas pretas encima, de solas para o ar, uma camisa branca aos quadros azuis e um cinto a prendê-lo num dos barrotes inferiores da varanda. A palavra suicida atravessou-me a mente sem eu a chamar. Parei. Olhei para todos os lados. Ninguém. Assomei-me ao rio, olhei para a água. Nada. Ali mesmo, a profundidade era escassa, não dava para afogamento imediato, antes para partir o espinhaço e tudo quanto é corpo. O barco da Marinha aproximava-se a bastante velocidade, passou por baixo da ponte em direcção ao Arinho de Figueiró. Era a direcção das correntes? Viram alguma coisa eles? Vacilei. Não fazia sentido ligar para o 112. Não havia (já) urgência nenhuma ali. Porém... Ninguém passava. Cheguei a casa e subi as escadas, procurei o número da Guardia Civil, peguei no telefone, liguei. Contei a minha história.

No princípio, quando o senhor Luís falou, pensei que vinha a caminhar pela encosta acima um homem que tentara suicidar-se e "salvaram" mas logo entendi que se referia a um cortejo fúnebre que passava, lá embaixo, no terreiro da Vila. Levantei do livro os olhos escancarados: amarrei os pontos. Contei a minha história.

Não demorei a ir embora e ainda ultrapassei a procissão de morto e vivos, séquito sem padre nem estandarte, quase já à altura do cemitério, ali no fim da ponte...

Dias mais tarde ainda vim saber por outro vizinho que presenciou a retirada do cadáver do rio —o corpo partido, partido e afogado— que o homem se atirara exactamente de onde deixara a roupa como sinal.