domingo, 7 de agosto de 2011

Pés de barro

"como se um rio pudesse voar com peixes e barcos e tudo lá
dentro e passar-nos por cima da cabeça sem se entornar."
valter hugo mãe. o apocalipse dos trabalhadores

Pedia-lhes desculpa sem perceber que ele não tinha culpa alguma. Depois, soerguia-se, estremunhado inteiro, sentava à beira da morte e olhava para os pés. Era sempre o que fazia, de manhã cedo, ao pousar aqueles pés no tapete: olhá-los como se não fossem seus, antes uns intrusos que aproveitam o ensejo da noite para se lhe colarem ao corpo. Porque os pés, aqueles, obrigavam-no a sair ao mundo contra a sua vontade, quando esta, fraca que fosse, a cada instante do dia ou da noite, era de permanecer deitado, de colubrinas pálpebras transparentes, a contemplar no tecto o rio que por ele fluía, sem nunca entornar, com as anêmonas-do-mar a chorarem cloreto de sódio em cristais grossos como diamantes de condessa, os pássaros revestidos de escamas azuis dum carmesim intenso que evitavam a presença irritante das melgas no quarto enquanto liberavam gorjeios em borbulhas de chumbo, ou os bivalves e búzios que pulavam de pedra em pedra libando os néctares minerais.

Porém, aqueles pés alheios, vergavam-lhe o desejo, atirando-o para os deveres que lhe pesavam como remorsos. Assim, saía à rua, de espingarda ao ombro e canana a tiracolo, chapéu tirolês e sorriso amplo para ajudar as velhinhas a atravessarem a rua nos lugares de maior perigo, abandonando-as no momento exacto em que passava o eléctrico das oito horas e dezassete minutos. Era ouvir o estalo dos ossos e sentia cócegas no pés.

2 comentários:

Jonas disse...

Grande sacana, esse!

Sun Iou Miou disse...

Safas-te, Jonas, que ainda não deu em "ajudar" velhinhos. ;)