sexta-feira, 18 de janeiro de 2013

Quinta de merda

—Chego a esquecer que tenho telemóvel —confessou-me ela— porque para mim ninguém liga.

Não demorei mais do que hora e meia a compreender porque não ligava ninguém para ela.

Chegara ao pavilhão com o saco dos patins às costas (quinta, até que enfim!  yepeehei!) e encontrei-a à porta (era eu quem levava a chave nesse dia).

—Já ia embora, pensei que não vinha ninguém —recebeu-me ela, tom de repreensão na voz.

E eu que não, que lá estava eu, chave e tudo, e viria, tinha de vir, alguém mais, com certeza.

Abri, entramos. Pousei o saco no chão e o corpo. Ela, a outra, nem foi buscar os patins. Ficou ao pé de mim, em pé, fala, fala, fala... Pus os patins, as caneleiras, as joelheiras, os protectores dos pulsos (um e dois, um e dois, um e dois, um e dois). Levantei-me, não caí, e ela, a outra, fala, fala, fala. E tentei entrar na pista, mas ela, fala, fala, fala. E meia hora depois ainda peguei no pau e na bola, para ver se assim, e nada. A cada movimento meu em direcção à pista, ela, a outra, puxava por mim com falas nada mansas (e eu com o pau na mão e más ideias na cabeça, mas rapariga educada que sou só pequei de pensamento e ainda ganhei lugar no purgatório), tenho para mim que o meu rosto era um poema, olhando para a porta (não vinha mais ninguém que me resgatasse?!), rodando as rodas no ar, batendo com o pau na bola não.

Até que disse eu, ó-caralho-vai-te-mas-é-foder, vou para a casa. E pousei o pau e o corpo no chão, e tirei patins, caneleiras, joelheiras, protectores de pulsos e arrumei tudo bem arrumadinho no saco. Levantei-me e disse, enfim, vou (vou embora, que já perdi tempo q.b.) e ela fala, fala, fala, ainda à porta (chovia, meudeus, chovia) e respirei fundo e desci um primeiro degrau e outro e todos, destemida. Ao carro, já! Quinta de merda hoje.

E ainda, quando eu já enfiava pernas, torso e cabeça, tudo enfim quanto é corpo, no carro, ouvi-a dizer, sarcástica:

—Olha que patinaste muito hoje...

E nem respondi, rapariga educada que sou, por não dizer pecados de alto, mas o meu rosto e os olhos nele eram um poema mesmo, todo inteiro. Não liga para ti ninguém, pois não?

4 comentários:

Jonas disse...

Arre, melga!
Há muitas assim, inúmeras...


Sun Iou Miou disse...

A culpa é minha, que me deixo ferrar. Mas nunca mais caio noutra (espero).

(E já agora, doutor Jonas, obrigada.)

condado disse...

Je... Se eu tivera que postar todos os despistes e as súas consecuencias tería que facer horas extras no blog, e ti, unha vez que che pasa xa estás conta que conta... Gosto disto da Quinta de Merda, dende o principio estaba esperando saber das túas andanzas pola mili...

Sun Iou Miou disse...

Má sorte, Condado. Se eu contasse só as cousas transcendentes que não me acontecem ia precisar de muita imaginação.