domingo, 25 de março de 2012

A traição











A esplanada estava deserta. Nem sequer o senhor Luís, freguês constante, com direito a mesa reservada, apareceu. Parecia um feriado qualquer, naquele silêncio da primeira hora da tarde na rua, quando ainda as famílias estão reunidas à mesa em volta da azia. Vinha, porém, no ar um bafo pesado, de resignação, que se reflectia no olhar esquivo dos empregados que atendiam atrás dos balcões, também no café onde comprei o pão e no quiosque onde agora me guardam o JL. Só depois, de regresso à casa, enquanto atravessava a ponte, reparei em que era 22 de março de 2012.

(Algum dia terei de estudar o que é que tem essa ponte que faz com que o meu cérebro funcione.)

sexta-feira, 23 de março de 2012

o pintasilgo

Minúscula ave
que estende de cor
memoria e asas.

quinta-feira, 22 de março de 2012

Outrora

O derradeiro verso
nunha carta perdida
de papel antigo.

terça-feira, 20 de março de 2012

Primavera

—E o inverno nunca mais vem...

Foi isso que disse o senhor Luís, à maneira de despedida, logo que me levantei da mesa para ir embora. Quando cheguei, ele estava debruçado sobre uma colorida dobre página do jornal, a deliciar-se numa passarela estática de belezas em fato de banho. Está calor. Diz-que hoje começou a primavera e o sangue, pois... esquenta. Manda a tradição animal que esta época do ano traga as andorinhas a sulcarem os ares esquivando os assassinos cabos opticamente eléctricos enquanto enfiam moscas e outra bicharada voadora pela goela abaixo sem descompor nunca a vertiginosa gracilidade, como quem come tremoços. Porém, a nossa esplanada, com a suba de temperaturas, o que mais traz é papagaio velho. Se pelo menos chovesse, hein, senhor Luís?

sexta-feira, 16 de março de 2012

De ollos para o ar

No voo da garza
o vento finxe
que bate as asas.

terça-feira, 13 de março de 2012

Guirlache

Pasei media mañán ás voltas da palabra que precisaba. Tiña un ch algures. Até aí sabía. Busquei por canto é sitio ou recanto de palabras perdidas nunca achadas: dicionarios, internet, memoria. Nada. Procura va, fútil desespero. [Xantei.] Saín de bicicleta ao descafé e no regreso, no esforzo pedalante dunha encosta, fixo, plop, saltoume aos dentes, coma un sorriso que triscase aos anaquiños.

domingo, 11 de março de 2012

Irreverencia







Goián, barrio de Tollo



No fondo, o que ela quería era ser guitarrista, pero á falta doutro instrumento, bótase man do que se ten máis á man. E o sentimento con que ela toca...?

sábado, 10 de março de 2012

Ende ben











Dóenme os pulsos e o silencio
Fáltame o ar: as palabras rachan
O día é unha cápsula de material indescifrable
Non teño respostas (nin fe)
Onte ceamos crise pero o tinto era bo.

domingo, 4 de março de 2012

Silueta






Athene noctua
moucho (gl) ; mocho-galego (pt); mochuelo (cast)

A contracorrente

Queixouse de que a vida estaba difícil para eles (para nós, dixo, como se fosen caste á parte do común dos mortais), os músicos, os poetas, os escritores. Como se a vida non fose (e fose, digo, non estivese) sempre difícil, uns días máis, outros algo menos, para case todo o mundo. Só quen tivo unha vida agasallada, unha protección extrema, un cordón umbilical artificialmente ligado, pode crerse vítima exclusiva dun mundo inxusto cando o cordón eventualmente racha. O mundo é inxusto. A vida é difícil. Nin sequera chove cando consideramos que debera chover por moito que lles poñamos nome ás estacións e aos meses, por moito que teñamos fe. Nada nos diferencia dos salmóns e a súa loita pola eternidade a contracorrente.

sábado, 3 de março de 2012

Incertezas

Há dias que o senhor Eduardo não vem pela esplanada. Desde que me apanhou a gripe e passei uma semana sem pisar na rua nunca mais o vi. Hoje perguntei por ele ao senhor Luís. Respondeu que estava com pneumonia. Não tinha mais notícias. Depois pediu informações a uma vizinha que subia a encosta. Ela também não o tinha visto nem sabia nada ao certo. Prometeu perguntar e trazer recado.

Nem me lembra porquê, acabámos a falar do desacordo ortográfico. Na certidão de nascimento dele diz que foi Luiz Felipe D'Almeida, mas no bilhete de identidade agora é Luís Filipe de Almeida. A gente perde ar nobiliário enquanto ganha anos. Tudo se transforma: certidões não são certezas.