terça-feira, 30 de agosto de 2011

A subversão das estrelas

Amanheceu e era noite. Parecia que para sempre, como se um sempre se quer que fosse existisse em realidade alguma. Levantou-se e calçou os chinelos. Não despiu o pijama nem tomou duche. Escovou os dentes, foi à cozinha, colocou a toalha na mesa, aqueceu um prato de sopa de cenoura no micro-ondas e depois comeu um iogurte magro natural e uma maçã golden. Vestiu um roupão por cima do pijama e desceu a rua. Encontrou-a salpicada de pontos de luz a girarem com as pessoas, que caminhavam a arrastar os chinelos em círculos grávidos, como planetas desconexos, ainda estremunhadas, vestidas de pijama ou camisola. No céu nenhuma estrela que se visse. Aliás, nada que se visse onde se supunha devia estar o céu, como um tecto de escuridão que tudo o cobrisse à interrogação dos olhos, como uma lâmina transparente que nada ocultasse dum longe de trevas feito. Leónidas Souza de Castro observou no corpo precisões ineludíveis. Uma mulher traçou uma tangente ao seu lado e deixou-lhe um penico de plástico aos pés. Acocorou-se e obrou. "O que é que eu hei-de fazer com estes excrementos?", perguntou-se. Um anão gigante trouxe-lhe a resposta passando ao seu lado e tomando o penico nas mãos: lançou o conteúdo por cima da cabeça e sumiu no rodopio do próprio círculo. Leónidas Souza de Castro pensou que iria chover merda sobre ele. Enganou-se. Apenas o fedor pairou uns instantes à altura do nariz, pois a negrume lá no alto parecia ter absorvido a porcaria. Cuspiu para o ar e ficou à espera embalde. Mais leve, acometeu-o então uma vontade intensa de girar mas teve medo de bater com as outras pessoas. Uma miúda albina de bengala na mão empurrou-o e os chinelos, levando o corpo atrás, encaixaram na órbita que lhes pertencia. Sentiu-se brilhar.

quinta-feira, 25 de agosto de 2011

Num fim de verão ou do mundo

—BASTA!!!
—...
—Desculpa, mas tive de acabar contigo. Matei-te, não te queixes agora. Não olhes para mim tão feita incrédula que bem sei que já não vês nem sentes. Não te vou ligar nenhuma. Afinal a culpa foi tua. Disse-te para não me tocares mais. Não gosto que me toquem. Avisei. Repeti. Porfiaste em tocar-me, ora no braço, ora na cabeça (até me roçaste a boca, merda!), numa coxa e na outra... Vezes de mais para a paciência de menos que eu tenho. Não me apalpaste a indignação à tona ou quê? Merecias. Merecias e pronto. Devias era ter medido a tua insignificância, ainda vivias e eu não teria mais um crime a expurgar. Quantas reencarnações me esperam por causa da tua inépcia e em que raça de bicho, de bactéria que nem lixo, penado bípede, trôpego meteorito ou poeira me irei transformar, eu, que já me sonhava na glória dum anestesiante e beatífico enlevo etéreo? O quê? Esperneias? Ah, pensei. Foi uma aragem a fluir inconsciente. Está um outono antecipado, as estações adiantam-se, quem sabe não vem aí um apocalipse qualquer ao virar da esquina. E como estão chatas as moscas...
—Pois, estamos. Não estamos?
—Não, minha querida, tu estavas, já foste.

Mortalidade

Consultei o prognóstico do tempo para ontem
à procura de horas
por se amanhã fosse ainda possível
darem tréguas neste sudoeste:
Era um clarão de nuvens no mapa
que respirei até ao último segundo de horizonte.

Há futuros que não somam águas passadas.
Todos os passados, no entanto, contam com algum sol
no fim de percurso dos relógios cegos.

segunda-feira, 22 de agosto de 2011

domingo, 21 de agosto de 2011

O meu retrato e mais






6 Dedos (2005)
Desenho: Walter Silveira
Fotografia e montagem: Fernando Laszlo
Bula Luzescrita. Sala clara
XVI Bienal de Cerveira

A un fotógrafo descoñecido







Castelo do Neiva, 20 de agosto de 2011

E se eu, afinal, tivesse alma?

Da morte com que na noite me deito
há manhãs em que encontro um paraíso
—aos meus pés o cão-azul,
o único café do dia aos lábios
(programa intensivo de ressurreição),
Johann Ernst Bach nos ouvidos
e um coro de galos que batalham
muito sonoramente.
Há também as moscas a lembrar que isto
aqui é ainda a terra.

Aqui é uma paz em que eu queria
suspender-me para a eternidade
ou então que fosse para já
a eternidade a suspender-se em mim.

sábado, 20 de agosto de 2011

Arroz de sarrabulho à cerveirense (ou doação para uma causa nobre)

Os meus vizinhos, um casal idoso e pouco remediado, ao fim de três dias de espreitas infrutuosas pelas capoeiras e cozinhas do bairro, pediram-me para os levar até as dependências da GNR: queriam apresentar queixa do roubo das galinhas. Sete. As sete que tinham (fora uma que estava já mais para caldo do que para ovos). Curiosamente não levaram o galo. Quem fora o biltre que aproveitara as críticas horas da tarde em que as altas temperaturas e a feijoada do almoço narcotizam a gente, impedindo qualquer reacção a estímulos externos ou cacarejos de socorro, para sequestrar o harém dum galo que agora não tem consolo possível pois não o dotou o criador de mãos nenhumas, quanto menos daquelas de dedo preênsil, e nem sequer as asas cativas lhe são de utilidade para assaltar galinheiros próximos? Era sempre o velhote que falava, a ressumbrar indignação e perdigotos que me deixaram perdido o painel do carro, enquanto a mulher, no banco traseiro, acenava seguido como quem petisca minhocas.

—E as minhas ricas poedeiras —clamava ele com a voz num tremor que comovia até os diamantes mais brutos—, lá onde elas estiverem, serão capazes de cumprir a missão para que vieram ao mundo sem galo que as cante?

O sargento de serviço, entre compungido e arrepiado, trás escutar o relato pormenorizado dos feitos —que não irei reproduzir porque não estou para aí virada—, abriu uma pasta do seu iphone e mostrou uma fotografia. Nesta, um alegre grupo de cervereinses entre os que se contava o próprio agente da autoridade dispunha-se em volta duma gigantesca e fumegante panela de arroz de sarrabulho em que uma inspecção atenta descobriria, entre outras delícias ensanguentadas, o fígado aos pedaços generosos dum artista comprometido com a igualdade entre todos os seres vivos independentemente do seu lugar na cadeia alimentar e catorze pés de galinha. Mas ao desapossado dono das aves bastou distinguir um pê só para reconhecê-lo como parte dos despojos da Maruxa, uma bela galega pedrês (galinha entenda-se) que comprara havia dois anos na feira de Tui —um bom dia em que fora lá às urgências devido ao encerramento da unidade na margem portuguesa— com que chegara a fruir dum relacionamento digamos especial. Assomou-lhe logo uma lágrima furtiva ao canto do olho, enquanto aos lábios da mulher, por primeira vez em três dias ou talvez dois anos, assomava um sorriso sardónico.

Porque hoje é sábado, Vinícius

Acordar a pensar que é sexta
e que seja sábado
(porque hoje é sábado)
sentir raiva e alívio, por esta ordem,
e não saber por que é que senti nada
(afinal é dia de labuta, meu cara).
Ligar a telefonia
para ouvir as notícias
e lá estão outra vez a falar do mesmo (aquele),
e da confissão, esse grande invento
que permite grandes males (e pequenos remédios)
sem perder fregueses, súper súperbueno,
(nunca me hei-de arrepender de ter abortado,
nunca hei-de me arrepender de o ter confessado).
Mudar de emissora e escutar
um requiem qualquer,
talvez o do Fauré,
talvez o meu,
e olhar no céu as nuvens,
dádiva dum deus
que não consente infernos
(que não consente incêndios)
e arrefece as minhas mãos
sobre o teclado.

sexta-feira, 19 de agosto de 2011

Água

Um dia talvez regresse à vida,
já vi que ela a mim não há-de vir
(por vezes entro aqui e é com desconcerto
que encontro sobre a tela um espelho mouco,
um silêncio baço, nada que se diga,
uma calma brava que me cospe).

Vislumbrasse amanhã cedo
entre a névoa o canto do rouxinol
que confundiu as horas,
pedir-lhe-ia para varrer de mim o cansaço
como se de um deus doméstico se tratasse.
Pegaria depois no lapis da noite
com que traço sobre o mapa
os ribeiros e fontes da minha sede.

sábado, 13 de agosto de 2011

Férias para quem pode

Tem imensa piada ouvir a quem não tem culpa pedir desculpa pelo atraso nos pagamentos, pelo menos!, ao dia 22 de agosto porque quem tem de assinar os cheques relativos ao trabalho do mês de julho está de férias.

terça-feira, 9 de agosto de 2011

Sopa de legumes

—As pedras crescem-lhe no cérebro por causa da estupidez.

Foi o que disse o médico e aquilo não lhe saía da cabeça enquanto comia a sopa. Que era inútil, assinalara, extirpar em cirurgias caríssimas as pedras, pois não desaparecendo a estupidez, elas voltariam a crescer como batatas em várzea suficientemente estercada. Sorrira, orgulhoso da metáfora que haveria de facilitar a compreensão da doença à paciente. Só que esta ignorava a importância do esterco na cultura da batata (ou de qualquer outro comestível vegetal, por acaso) e nunca pusera os pés, menos a enxada, em várzea alguma. Aliás, de hortaliças apenas sabia os preços porque gostava muito de sopa de legumes.

—E depois, no hipotético caso de... Quer-se dizer, se —emendara-se, doutor também em singeleza— mãos peritas, acudindo-se dos instrumentos que a tecnologia clínica avançada proporciona, conseguissem cercear as pedras e esterilizar mediante algum produto químico de última geração a estupidez, o vazio viria a encher o oco interno do crânio, com consequências assaz previsíveis, como levitações, cólicas intestinais e diarreias, comichão generalizada, um exacerbado apetite sexual, visão telescópica e, mesmo, tonturas.

Interrompera-se aí o facultativo para melhor avaliar o sucesso da explicação e ela, simulando que percebera tudo, acenara um quase nada, não fossem as brusquidões estimular a prosperidade do pedregal que a estupidez semeara. Depois, numa letra praticamente ilegível, prescreveu-lhe um genérico cujos princípios activos, resignação e paciência, tinham provada eficácia em transtornos similares, em supositórios, sublinhou, e aconselhou-lhe a introduzir um em cada orelha todas as noites antes do jantar. Aquilo também não lhe saía mais da cabeça. A sopa estava especialmente boa e os ingredientes ficaram bem triturados, mas custava-lhe a engolir, como se as pedras do cérebro tivessem espalhado os caules, as raízes ou sabe-se lá o quê (os tubérculos?) até ao esófago. Que estupidez, pensou, mas arrependeu-se logo de ter pensado isso.

domingo, 7 de agosto de 2011

Pés de barro

"como se um rio pudesse voar com peixes e barcos e tudo lá
dentro e passar-nos por cima da cabeça sem se entornar."
valter hugo mãe. o apocalipse dos trabalhadores

Pedia-lhes desculpa sem perceber que ele não tinha culpa alguma. Depois, soerguia-se, estremunhado inteiro, sentava à beira da morte e olhava para os pés. Era sempre o que fazia, de manhã cedo, ao pousar aqueles pés no tapete: olhá-los como se não fossem seus, antes uns intrusos que aproveitam o ensejo da noite para se lhe colarem ao corpo. Porque os pés, aqueles, obrigavam-no a sair ao mundo contra a sua vontade, quando esta, fraca que fosse, a cada instante do dia ou da noite, era de permanecer deitado, de colubrinas pálpebras transparentes, a contemplar no tecto o rio que por ele fluía, sem nunca entornar, com as anêmonas-do-mar a chorarem cloreto de sódio em cristais grossos como diamantes de condessa, os pássaros revestidos de escamas azuis dum carmesim intenso que evitavam a presença irritante das melgas no quarto enquanto liberavam gorjeios em borbulhas de chumbo, ou os bivalves e búzios que pulavam de pedra em pedra libando os néctares minerais.

Porém, aqueles pés alheios, vergavam-lhe o desejo, atirando-o para os deveres que lhe pesavam como remorsos. Assim, saía à rua, de espingarda ao ombro e canana a tiracolo, chapéu tirolês e sorriso amplo para ajudar as velhinhas a atravessarem a rua nos lugares de maior perigo, abandonando-as no momento exacto em que passava o eléctrico das oito horas e dezassete minutos. Era ouvir o estalo dos ossos e sentia cócegas no pés.

quarta-feira, 3 de agosto de 2011

O roubo

É claro que eu tas hei-de devolver, uma por uma, sem mexer nelas, mas talvez já não as reconheças como tuas. Disse-lhe isto e ele olhou para mim mudo do espanto e da falta das palavras, boquifechando-se com receio que lhe roubasse também o fôlego com que antes as criava. Respira, disse-lhe, não sou ladra de espíritos, antes de substâncias quase impalpáveis como a espuma do mar quebrado ou os ares oxigénios que transitam entre os dedos, e ele olhou para mim, escondendo atrás das costas as mãos, como maneta corcovado pelo fardo dum tesouro descomunal. Não temas, tentei acalmá-lo, pois com esses ares que arrecado e as espumas que peneiro apenas construo sons que precisam de ouvidos finíssimos a acolherem-os. Furtou-se-me ele inteiriço, dos cabelos às unhas que nas sandálias repousavam, mascarando as orelhas entre borboletas e cavalinhos-do-diabo de perene condição e mais alguma flor distraída que lhe emprestou as pétalas cor-de-luz para que voasse.

Foi-se-me ele, mas eu fiquei dona e senhora de tudo quanto não era o mundo.

Suplemento de calcio

Apréndese a desistir de tanta cousa,
da noite sobre todo que sobrenada
no sono que rouba o tempo e mana
desacougos fondos coma pozos.
Apréndese a dispensar o café, os soños,
a madrugada sen dores e sen flores,
os bicos e as apertas, os ollos no silencio,
as mans e os horizontes. Apréndese.
Apréndese a reptar pola terra
dobrando a carne e a rabia,
a enterrar os mañás antes da hora,
a comer sen sal e sen compaña.
Apréndese a non agradecer ao ceo
o infinito que se foi deixando ás costas,
a artrite e a brancura nos cabelos,
os amigos, as engurras e os iogures.

terça-feira, 2 de agosto de 2011

Qual crise?!

É assim que o país vai bem, acreditem. Lá vou eu mercar uns bilhetes para os próximos concertos de piano em Cerveira. No ano passado eram 7€ cada, de maneira que a minha inteligência pré-clara achou que tendo subido dois euros (de cinco para sete, por se alguém não tiver dedos para contar) frente ao preço de 2009, este ano manter-se-iam nos 7€. Como sempre, enganei-me, meus queridos. O preço voltou às origens, 5€!

-Então - perguntei - não há crise em Cerveira?!
-É pelos trocos - responderam.

E vivam os trocos... ou a falta deles.

segunda-feira, 1 de agosto de 2011

O Gran Burato

Tal e como andan os prezos dos combustibles, xa se sabe, empézase polo gas libre e logo... Sirva isto de aviso aos galegos desprecavidos porque calquera día lles aparece un equipo de científicos a enfiarlles unha sonda pola porta de servizo para explorar as acumulacións de gas sen liberar. Poida que resulte de interese a exploración pero a explotación prevese que non sexa tan atractiva.

Majuntáis?

Agora que, grazas non sexan dadas ao facebook, tan desvalorizada está a palabra "amigo", propoño recuperar a expresión con que na aldea segoviana onde naceu miña nai e eu pasaba as vacacións, pediamos para incorporarnos a un grupo, non à procura de amizade, senón simplemente para participar nos xogos e as excursións durante o tempo que estivésemos alí, equivalente ao "Podo xogar convosco?" que lles oio agora aos rapaces.

"Majuntais?", deciamos. As caras todas volvíanse e unha das raparigas ou rapaces do grupo respondía: "Tajuntamos".